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Projetos na UFRJ e Fiocruz para desenvolver medicamento à base de maconha

Pesquisadores das duas instituições vão analisar composição, segurança e eficácia dos extratos de Cannabis usados com fins medicinais no país

Por Cesar Baima I O Globo

RIO – O verde da maconha em breve pode ganhar tons amarelos, reproduzindo as cores nacionais do Brasil. Cada vez mais utilizados como tratamento alternativo para diversas condições de saúde, dos enjoos provocados pela quimioterapia contra o câncer a convulsões incontroláveis por remédios convencionais em crianças, compostos da planta, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), são alvo de projetos de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que devem levar ao desenvolvimento do primeiro fitomedicamento à base de maconha no país. Com isso, o uso das substâncias ganhará rigor científico e padronização ainda inéditos no mundo, guiando sua aplicação terapêutica.

— A situação que temos hoje é complicada — justifica Virgínia Martins Carvalho, professora de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRJ. — A maconha e substâncias nela contidas têm propriedades terapêuticas reconhecidas internacionalmente, e disso não há dúvidas, mas ainda há uma confusão muito grande para seu estudo, principalmente por conta da proibição, que dificulta bastante as pesquisas.

Pés de maconha: substâncias contidas na planta estão sendo usadas principalmente no tratamento de crianças com epilepsia refratária a remédios convencionais - Matias Maxx

Pés de maconha: substâncias contidas na planta estão sendo usadas principalmente no tratamento de crianças com epilepsia refratária a remédios convencionais – Matias Maxx

Diante disso, Virgínia apresentou e teve aprovado este mês um projeto de extensão na instituição, intitulado Farmacannabis, cujo objetivo principal é analisar a composição dos extratos de maconha importados ou produzidos artesanalmente, e clandestinamente, no Brasil com fins medicinais. No caso dos extratos importados, embora após muitos protestos e ações na Justiça a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha autorizado em caráter excepcional sua entrada no país para o tratamento de crianças que sofrem com a chamada epilepsia refratária, em que os remédios comuns não foram capazes de controlar as convulsões, até recentemente estes produtos eram comercializados como suplementos alimentares nos EUA, e por isso sua fabricação não precisa obedecer a padrões estritos como os de medicamentos.

Projeto orçado em R$ 250 mil – O problema é tamanho que avaliações feitas pela Administração para Alimentos e Drogas (FDA, o órgão fiscalizador do setor no país) de alguns dos extratos mais vendidos nos EUA, entre 2015 e 2016, verificou que quase nenhum deles continha as proporções de CBD e/ou THC indicadas em seus rótulos. Além disso, muitas famílias brasileiras não têm condições de arcar com a compra dos extratos importados — um vidro dos óleos americanos custa por volta de US$ 300 (cerca de R$ 1 mil), e dependendo do peso e sintomas da criança, são utilizados até dois deles por mês —, e acabam plantando maconha e fazendo os compostos em casa, ou obtêm estes de fabricantes artesanais.

— Ninguém sabe de fato qual o grau farmacológico destes extratos, isto é, qual a concentração de CBD e THC neles — conta Virgínia. — Isto dificulta o controle e a eficácia da dosagem, já que, embora o médico possa prescrever e acompanhar o tratamento, ele não tem ideia de exatamente quanto CBD e THC a criança está tomando. Com o Farcannabis, vamos dar suporte analítico tanto para os pacientes e suas famílias quanto para os médicos, além de proporcionar aos estudantes experiência em análises toxicológicas e interação clínica pelo contato com pacientes e médicos.

Ainda de acordo com Virgínia, até o fim do projeto, inicialmente orçado em quase R$ 250 mil, também deverá estar em funcionamento uma plataforma digital de acesso gratuito na qual, mediante inscrição ou cadastro, médicos, familiares e alunos poderão obter mais informações sobre os possíveis usos medicinais da maconha, os resultados das análises feitas durante a iniciativa e como elas foram realizadas.

— A maconha tem cerca de 70 canabinoides e seus ácidos, cada um deles com suas propriedades e efeitos — destaca Virgínia. — Falar do canabidiol como se não estivéssemos nos referindo à planta procura dar uma ideia de afastamento da maconha, o que é uma falácia. Nenhum destes canabinoides existe isolado, e precisamos saber como eles atuam entre si, em particular o THC e o CBD.

Eles têm uma ação dinâmica no sistema nervoso central, num efeito que chamamos de “comitiva”, que é variável de pessoa a pessoa. E é por isso que conhecer suas proporções nos extratos é muito importante. Sabemos que estes extratos ajudam, mas ainda precisamos saber como dentro de um planejamento terapêutico segundo sua composição e dosagem, isto é, porque algumas pessoas se beneficiam mais de extratos que tenham mais THC e outras de extratos com mais CBD. E para isso temos que estudá-los. Só com este monitoramento e os relatos clínicos poderemos conhecer melhor esta associação.

Esta investigação também será fundamental para o projeto na Fiocruz. Lançado em março deste ano com a criação de um grupo de trabalho do qual a própria Virgínia faz parte, o Fio-cannabis discute a viabilidade e formatação de uma ampla e longa pesquisa científica com intuito de, provada sua eficácia e segurança, eventualmente fabricar um fitomedicamento de Cannabis para alívio da epilepsia refratária.

— A ideia é estudar os extratos tanto do ponto de vista de toxicidade quanto de segurança, além de fazer ensaios pré-clínicos e clínicos das fases 1, 2 e 3 para avaliar sua eficácia, isto é, seguir todo o processo necessário para o registro de um medicamento no Brasil junto à Anvisa com foco na epilepsia refratária — diz Hayne Felipe da Silva, diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), que encabeça a iniciativa.

Com uma tríade de segurança, eficácia e qualidade igual à de qualquer outro medicamento, o pesquisador pretende chegar a um produto feito no Brasil com custo menor e que possa vir a ser distribuído pelo SUS (Sistema Único de Saúde, do governo federal), além de dar a ele o rigor de medicamento que não há nos EUA.

De acordo com Silva, a expectativa é de que até o fim deste ano o projeto de pesquisa definindo, entre outros fatores, como ela será feita, quantos voluntários serão necessários etc, já esteja pronto para ser encaminhado à Anvisa, com os estudos começando na prática já no ano que vem. Ao todo, ele espera que o processo de desenvolvimento do fitomedicamento leve de cinco a dez anos.

— Temos que começar logo, ainda mais por se tratar de substâncias que têm ação no sistema nervoso central, um complicador adicional.

Silva conta, no entanto, que um dos principais obstáculos que ainda faltam ser superados para dar início efetivo à pesquisa é justamente encontrar um fornecedor regular dos extratos de Cannabis, seja do Brasil ou do exterior, com a qualidade e padrão de composição necessários para uma investigação científica do tipo. O que é certo, porém, é que a Farmanguinhos não vai plantar maconha e produzir os compostos.

— A Farmanguinhos é uma indústria de transformação, então vamos fazer com este produto o que fazemos com os outros medicamentos: compramos o princípio ativo e formulamos o remédio.

Mudança de patamar dos medicamentos – Na outra ponta deste esforço de duas das maiores instituições de pesquisa do Brasil estão pessoas como Sofia. A menina, portadora de CDKL5, doença rara que tem como um de seus sintomas crises convulsivas, é filha da advogada Margarete Santos de Brito, presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), e uma das crianças que estão se beneficiando da autorização da Anvisa para importação dos extratos de Cannabis. Segundo Margarete, atualmente Sofia toma um misto de extratos de Cannabis importados e artesanais, além de outros remédios e tratamentos convencionais para sua condição, que ela estima terem reduzido em 70% seus ataques epiléticos.

— Para a gente, estas pesquisas mudam completamente o patamar dos fitomedicamentos de Cannabis no Brasil — avalia. — Como os extratos importados também vão ser testados, teremos um controle de qualidade que não é realizado nem nos EUA, já que as informações em seus rótulos não necessariamente corresponde à realidade.

E a preocupação de Margarete vem de experiência própria. Ela conta que recentemente adquiriu um extrato americano que dizia ser livre de THC, o canabinoide de efeito euforizante da maconha e um dos mais presentes na planta. Antes de dá-lo a Sofia, porém, ela decidiu prová-lo e acabou tendo uma “onda”, o que a fez decidir não administrá-lo à menina.

— Estes extratos entram no Brasil a preço de ouro, são extremamente caros e não têm necessariamente qualidade — reclama. — Já os produzidos artesanalmente aqui podem ser tão ou mais eficientes do que os que vêm dos EUA, mas com eles também não sabemos quais os percentuais de canabinoides que estamos dando para as crianças. Mas, com estas pesquisas, vamos saber.

Para Margarete, também é relevante o fato de os estudos estarem nas mãos de duas renomadas instituições de pesquisa no país.

— Isto serve como um aval de que a maconha pode ser sim um remédio — destaca. — E por mais que este processo de investigação possa demorar, ter um fitomedicamento de Cannabis verde-e-amarelo, ou na verdade mais verde que amarelo, será uma realização muito importante.

Enquanto isso, contudo, Margarete procura garantir a continuidade do tratamento da filha. Na última quinta-feira, a advogada obteve na Justiça um habeas corpus preventivo que proíbe as polícias Civil e Militar do Rio de detê-la e/ou apreender as plantas de maconha que cultiva em casa para produzir os extratos de Cannabis artesanais que dá a Sofia. O salvo-conduto é válido até que seja julgado em definitivo processo que ela move na 14ª Vara Federal do Rio de Janeiro em que pleiteia permissão para cultivar a planta ilícita com fins medicinais.

 

Uso medicinal da cannabis

A descriminalização da maconha vem sendo discutida em audiências no Senado Federal

 

 

Em entrevista à Rádio Senado, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que presidiu uma série de audiências públicas da Sugestão Legislativa Popular nº 8, a fim de regular o uso recreativo, medicinal e industrial da maconha, defendeu a descriminalização da erva.

O senador afirmou que deve ser preservado o direito dos pacientes e das famílias acerca da necessidade de uso do canabidiol para fins medicinais. Buarque defendeu também a produção pública nacional da substância. Clique aqui e ouça o áudio.

 

Palestra discute uso medicinal da maconha

Fiocruz cria grupo de trabalho para apoiar iniciativas voltadas para estimular pesquisas com cannabis para fins medicinais


Daqui a um mês (3/12), a pequena Sofia completará oito anos de idade. Desde que nasceu, ela sofre com constantes crises de convulsão, sendo que, nos últimos anos, diminuíram drasticamente graças ao uso de um elemento extraído de uma planta: o canabidiol. Apesar dessa ótima resposta dada pela natureza, que trouxe alívio para a menina, a comemoração não pode ser completa porque a planta, da qual a substância foi isolada, é a maconha, erva incluída na lista de drogas ilegais no Brasil.  Com o objetivo de debater este importante tema para pacientes, classe médica e comunidade científica, o Centro de Estudos de Farmanguinhos trouxe para discussão o Uso medicinal da cannabis, palestra proferida pela advogada Margarete Brito, a mãe da Sofia, e por Eduardo Faveret, o médico da menina.

Margarete Brito falou sobre a necessidade de liberação da maconha para fins medicinais

Margarete Brito falou sobre a necessidade de liberação da maconha para fins medicinais

“Maconha é remédio, e acesso a remédio é questão de saúde pública. Portanto, não pode ser considerado crime”, ressaltou Margarete. Ela explicou que procurou se informar mais a respeito das substâncias da cannabis sativa (nome científico da maconha). Atualmente, a advogada coordena a associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Desde então, ela vem lutando ao lado de outras mães de pacientes que sofrem com crises epiléticas e convulsões.

De acordo com Margarete, Sofia é portadora da Síndrome CDKL5, uma variante da síndrome Rett (doença causada por mutações no gene do cromossomo X). Desde que descobriu os efeitos terapêuticos da planta, ela vem promovendo o debate a fim de engajar o público nesta importante causa. A advogada argumentou que a substância possui excelente potencial para controle de convulsão, mas é proibida.

As variações da qualidade, no entanto, fizeram ela tomar uma decisão: cultivar a planta em casa, o que gera outro problema de ordem legal. “Plantar maconha para uso medicinal não é crime. Crime é a mora Legislativa que não regulamenta o uso medicinal da cannabis. Crime é a omissão do Estado que não cumpre as decisões judiciais que mandam fornecer remédios”, argumentou.

O médico Eduardo Faveret falou sobre os efeitos terapêuticos das substâncias encontradas na maconha

O médico Eduardo Faveret falou sobre os efeitos terapêuticos das substâncias encontradas na maconha

Segundo Margarete, a participação da mídia foi fundamental para ampliar o debate, o que proporcionou quatro conquistas para o grupo. A primeira foi em 2014, quando o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) ter autorizado a prescrição do canabidiol. Ainda em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamenta para todo o território nacional. A terceira ocnquista veio no ano passado, quando a Anvisa retirou o CBD da lista de proscritos e regulamenta a substância. Também no ano passado, a Agência regulatória passou a autorizar a prescrição de THC.

“Esperamos que a quinta conquista seja que Farmanguinhos produza extrato de cannabis e distribua (via SUS) para pacientes de epilepsia, dor crônica, câncer, parkinson, esclerose múltipla”, frisa a advogada.

Projeto Fio Cannabis – Representando o diretor Hayne Felipe, em compromissos institucionais em Brasília, Márcia Coronha disse que a Fiocruz está com um projeto especificamente voltado para estudos com cannabis. “Esse grupo multidisciplinar foi formado a partir de uma solicitação feita pelo próprio presidente Paulo Gadelha a fim de apoiar as ações A ideia do Fio Cannabis é apoiar a Apepi e a ABRA Cannabis (Associação Brasileira para Cannabis)”, explicou a pesquisadora Márcia Coronha.

Alessandra Viçosa, Margarete Brito, Márcia Coronha, Eduardo Faveret, Maria Behrens, David Tabak, Lauro Pontes e Karla Gram

Alessandra Viçosa, Margarete Brito, Márcia Coronha, Eduardo Faveret, Maria Behrens, David Tabak, Lauro Pontes e Karla Gram

O médico Eduardo Faveret apresentou casos de sucesso de pacientes que administraram não somente o canabidiol (CBD), como também o Delta 9 Tetrahidrocanabinol (THC). Dentre outros benefícios, Faveret informou que o canabidiol tem efeito anticonvulsionante em quase todos os modelos experimentais de crise. “Pode ser administrado por via oral, por meio de vaporização (a mais rápida), fumo, adesivo transdérmico, sublingual, supositório. Habitualmente é utilizado principalmente na forma de óleo ou pasta, que pode ser ingerido ou vaporizado”, explicou.

Segundo Faveret, o canabidiol é um fitoterápico com grande versatilidade terapêutica e segurança. “Incidem alguns poucos efeitos adversos, como sonolência, diarreia, vômitos e convulsões. O uso combinado do THC com canabidiol permite a associação dos efeitos terapêuticos com menos efeitos adversos”, destacou. No entanto, adverte que “o potencial terapêutico de tratar crises e comorbidade psiquiátrica necessita de estudos controlados”, conclui.

Margarete Brito exibiu o vídeo Estado de necessidade, de aproximadamente cinco minutos, que mostra a luta de mamães e papais de pacientes que necessitam das substâncias encontradas na maconha para terem uma qualidade de vida melhor. Após as duas apresentações, os palestrantes participaram de debate com o público presente.

Fotos: Edson Silva